Olá Galera;
Achei muito interessante uma análise sobre a VALSINHA de Chico Buarque e Vinícius de Moraes, essa música que foi a premissa do nosso processo pedagógico.
Abaixo publico para compartilharmos todos.
Bjão
Jó ::. Análise estilística da canção Valsinha Vinícius e Chico Buarque .::
Elaboração: Prof. José Atanásio da Rocha
VALSINHA
De: Vinícius – Chico Buarque
Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado, cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se ousava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanto felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz
Memória discursiva.
Valsinha, uma canção de Chico Buarque de Holanda dedicada a um movimento social dos anos 70 denominado hippie, pregava a liberdade de ação do indivíduo. Essa prática levava as pessoas a agirem livremente e sem preconceito no período de repressão do Governo Militar. Normalmente, seus seguidores viviam em grupos, preconizavam o amor, aboliam a discriminação racial e faziam sexo livremente, isento de condenação. A alusão que Chico faz ao movimento é figurada na performance de um casal que, “um dia“, muda a sua conduta e toma outro rumo na vida. A homenagem a esse evento de vanguarda retrata metaforicamente o lirismo vivido por seus integrantes como artifício para fugir da censura política.
Estrutura do texto.
Valsinha é estilisticamente um poema. Além de sua estrutura poética, possui a narrativa, o que faz dela um mini conto, pois possui um só núcleo. Sua narração começa em um momento qualquer (um dia) e as ações são introduzidas seqüencialmente até chegar a um fim esperado. Por isso, a narração é heterodiegética, centrada no narrador. Com o foco narrativo na 3.ª pessoa, o narrador vê tudo à distância e conduz o fato sem interferir na história. Assim, o ele controla todo o saber, sem limitações de profundidade externa ou interna, em todos os lugares ou em todos os tempos. Em resumo, o texto é narrado por um narrador onisciente.
Marcadores da narrativa e da oralidade.
O texto apresenta conjunções como marcadores da oralidade, nas quais o narrador apóia-se para sustentar sua narrativa. Ex. e..., e..., pra..., depois..., então... Como marcadores da narrativa destacam-se o tempo (um dia, muito tempo), o espaço (num canto, praça, cidade, o mundo) e os verbos que cumprem sua função nas modalidades de pretérito perfeito e Imperfeito: “Chegou...”, “diferente...”, Olhou-a ...”, “costumava ...”, “maldisse...”.
Da instância lexical.
Palavras mais sedutoras: “quente..., bonita..., decotado..., ternura..., beijos loucos”.
Palavras mais próximas semanticamente: “A guardado... esperar; Há... muito tempo; ternura... graça; despertou... iluminou; gritos... ouvir; compreensão... paz; maldisse... falar; só... canto; bonita... ousar; tanto... tantos; dança... rodar.”
Palavras mais distantes semanticamente: chegou... foram; maldisse... paz; diferente... sempre; só... abraçar.
Por conta do entendimento semântico de Valsinha, que retrata uma ação diferente do passado e nos remete à idéia de aproximação, há poucas palavras que se contrapõem no sentido de distanciamento.
O eixo paradigmático da canção.
Do ponto de vista sintático, podemos destacar os sujeitos presentes na canção (SN – sintagma nominal) e seus respectivos predicados (SV – sintagma verbal). Na primeira fase da apresentação o SN é o pronome definido ELE. Na segunda, ELA. Finalmente OS DOIS. Há, também, outros SN que são introduzidos no enredo e fazem parte do contexto, sem importância central. São eles: Toda a Cidade...; A vizinhança...; Beijos loucos...; Gritos roucos...; O mundo...; O dia. Mas o eixo paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais notadamente com a presença dos verbos terminados em AR, como por exemplo: “chegar...; Olhar...; Rodar; Ousar etc.
Metáforas
A canção é inteiramente metaforizada. Algumas metáforas mais expressivas podem ser destacadas facilmente na canção.
Metáfora Sentido semântico
Vestido decotado - Camisola.
Cheio de ternura - Cheio de desejos, volúpia.
Foram para a praça - Foram para a cama.
Só num canto - Abandonada.
Pra rodar - Fazer amor.
Cheirando a guardado - Engavetado.
Dançaram tanta dança - Fizeram muito sexo – Jogo do amor.
O mundo compreendeu - A felicidade é transparente.
Jogo das pressuposições.
Tomemos como exemplo o seguinte verso: “um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar”. Por esse verso pressupõe-se que antes do movimento hippie os sentimentos femininos em relação à liberdade sexual eram mais reprimidos. A manifestação de desejos e emoções em relação à vida sexual não se dava de maneira explícita. Com o seu surgimento, as relações humanas sofreram uma mudança brusca de comportamento, principalmente afetivo. A partir daí, os sentimentos e desejos são mais encorajados pelo prazer, sem censura, sem repressão ou sem estado de culpa. A liberdade nele presente permitiu transformar sentimentos que antes eram introspectivos e ocultos em demonstrações mais eróticas.
Conclusão do ponto de vista estilístico.
Valsinha é uma canção que pode ser considerada como um mini conto. Sua história ocorre no pretérito, em um momento qualquer, e chega a um tempo indeterminado com a exibição de uma sensível mudança de estado. Para consolidar as ações e estabelecer marcas que determinam seu intento, o eu-lírico narra na 3.ª pessoa, com verbos enfáticos que consagram um gesto pragmático no tempo. Para isso, esses sintagmas verbais se apresentam, quase que sempre, com as desinências temporais nos pretéritos perfeito e imperfeito. Assim, “um dia” ele “chegou”, “olhou” e convidou”. Chegou de maneira diferente do usual, mudando o estado em que se encontrava, pois “costumava” agir de uma maneira e passa por uma transformação, a ponto de externar seus sentimentos incutidos e sufocados em “gritos roucos”, como não se “ouviam” mais. Para provocar a idéia de valsar, o autor vale-se de repetições como “tanta dança”, “tanta felicidade”, “tantos beijos”, “tantos gritos”, criando uma mistura de significados que provocam um verdadeiro “rodopio” na percepção do leitor, até atingir seu intento. Outro importante detalhe a ser observado é que os versos começam organizados e longos e, à medida que o enredo vai tomando seu curso final, eles se encolhem e incorporam elementos que nos remetem à idéia de estreitamento e movimentos circulares, como se quisessem simular os movimentos de uma valsa. Seus recursos estilísticos são vastos. Do ponto de vista lexical, o autor usa palavras que se assemelham, cujos pares residem na mesma raiz, na tentativa de provocar o mesmo significado. Nesse sentido, podemos dizer que Valsinha é a mais pura poesia, pois as palavras vão e vêm provocando fortes sentimentos na sua interpretação. Morfologicamente, as raízes das palavras também se fazem presentes, mas com o uso de categorias diferentes dos verbetes. É o caso do verbo “dançar” e do substantivo “dança”. Na relação morfossintática, observamos que o grande paradigma fica por conta do sintagma verbal, que ricamente se alterna em diversas situações. Nesse sentido, o sintagma nominal ganha outras formas e age de maneiras diferentes, destacando-se em importância no enredo. Os verbos se apresentam com rigor e firmeza. Suas ações são decisivas. Às vezes eles mudam de estado, passando de pretérito perfeito para imperfeito, para provocar uma idéia de continuidade. É o caso de “costumava”. Não é só na rica estrutura estilística que o poema é admirado. Do ponto de vista semântico, Valsinha provoca uma grande surpresa. Com metáforas ricas e invariavelmente “in absentia” (ausente), como podemos observar em “seu vestido decotado”, o sentido figurado de suas metáforas consolida-se em uma metáfora maior que enaltece o movimento hippie da década de 70, em pleno regime de ditadura militar. Esse movimento social não se sujeitava às imposições retraídas da sociedade de então, permitindo a expressão de liberdade dos seus seguidores, os quais usualmente viviam em grupos, preconizavam o amor, aboliam a discriminação racial e faziam sexo livremente. Valsinha exalta a liberdade dos integrantes desse movimento e a ousadia das manifestações nas suas relações afetivas, até então reprimidas e sufocadas na sociedade. A grande surpresa da canção fica por conta de seu sentido metafórico. A idéia concebida de que se refere a um casal apaixonado, deixa de ser tão importante para valorizar-se em uma dimensão maior: a do engajamento social. Seu sentido é muito mais global e universal, pois faz alusão a um movimento de caráter revolucionário que ousou desafiar a sociedade tradicional da época e contestar os valores e os padrões de seus regimes dominantes.